A assistente, um pequeno erro e o nascimento do Chanel nº 5
Gabriele hesitou. Como assim ele dizia o número que a acompanhava misticamente durante sua vida no convento, e que de alguma maneira tornou-a suportável? “Ho!” Ela soltou sem acrescentar mais nada.
“Aqui estão as amostras de um a cinco e aqui de vinte a vinte e quatro”, o perfumista apontou para os tubos. Beaux lhe entregou uma lata com grãos de café. Visto que já conhecia o ritual, ela limpou o nariz do cheiro da rua. Percebeu o olhar espantado de Dimitri, mas o deixou no ar; explicaria a ele o sentido do procedimento mais tarde.
Sua pulsação acelerou quando o perfumista abriu o primeiro frasco. Aromas de rosa e jasmim vieram em sua direção. Gabrielle tentou concentrar-se neles e, ao mesmo tempo, se manter impassível. Beaux não deveria notar o quanto ela estava agitada. Ela havia aprendido com François Coty a esperar para decidir, pois muitas vezes um aroma precisa de tempo para se desenvolver.
Na amostra número um, ela não precisou de muito esforço para ocultar seus sentimentos – não se tratava do aroma que procurava. Doce demais e fora de moda. Sem fazer comentários e com o rosto inexpressivo, Gabrielle devolveu a vareta de vidro que havia cheirado. O procedimento repetiu-se mais três vezes, antes de ela pegar novamente a lata com grãos de café. Seu nariz já estava mais educado, mas depois de quatro amostras precisava urgentemente de uma pausa para voltar a ser capaz de diferenciar os aromas de novo.
Ela pegou a quinta amostra – e precisou fazer força para abafar o sorriso que teimava em aparecer nos cantos da boca. Era o Bouquet de Catherine.
Não, Gabrielle se corrigiu mentalmente, não de todo. Havia ainda algo de diferente no lenço de Diaghilev.
Mais moderno. Mais fresco. Mais jovem. E mais alguma coisa. Será que esse aroma seria mais autêntico para as mulheres do seu tempo? Da maneira mais sóbria possível, ela devolveu a amostra para Ernest Beaux. E notou que estava sendo observada. Não por Dimitri, mas uma pessoa estranha não parava de encará-la. Sem pensar, ela virou a cabeça e olhou por sobre o ombro. A assistente de laboratório estava atrás de Dimitri, quase oculta por sua compleição forte.
Seguiram-se as fórmulas número 20 e 24, depois Gabrielle neutralizou o nariz novamente com uma inspirada no café, antes de se voltar aos três últimos frascos. Também esses perfumes correspondiam à mesma família de aromas, mas eram compostos de maneiras diferentes daquelas das cinco primeiras amostras. Gabrielle hesitou uma ou duas vezes, mas nenhum dos aromas impressionou-a tanto como o de número 5.
“A senhora quer tomar notas?” perguntou Beaux, quando ela lhe devolveu a última amostra.
Ela balançou a cabeça. “Não, não preciso. Gostaria de testar novamente a primeira série.”
Enquanto lhe passava uma amostra do número 1, ele sugeriu: “A senhora pode fazer mudanças a qualquer instante, Mademoiselle Chanel. Criar um perfume é um quebra-cabeças. Os ingredientes têm de ser constantemente testados antes de combinarem com perfeição. Se a senhora quiser outros ingredientes, podemos tentar. O laboratório este totalmente à disposição. ”
Lado a lado com Ernest Beaux, ela testou as mais diversas possibilidades. Ele lhe entregou, um depois do outro, os pequenos flaconetes que continham diversos óleos essenciais que tinham dado origem à nota de coração. “Essa família é composta pelos aromas mais luxuosos do mundo,” ele lhe explicou. “Rosa, jasmim, Ylang-Ylang e sândalo, que se contrasta com as substâncias mais doces. São aromas tradicionais numa combinação diferente e usual.
Ela cheirou em silêncio e depois de algum tempo, Gabrielle perguntou a Beaux o que havia de diferente no perfume que encantara seus sentidos.
“ É a alta concentração de aldeídos”, respondeu ele.
“São moléculas artificiais, certo?” ela perguntou , enviando secretamente um agradecimento a François Coty, que a introduzira nos segredos da produção de perfumes. “Me disseram que a produção de aldeído é muito trabalhosa e que, por isso, o perfume se torna muito caro.”
Depois de Gabrielle relatar a Dimitri que havia encontrado o que procurava, ela pediu uma amostra para que ele cheirasse.
“Tem o cheiro fresco de neve recém-caída nos telhados de Petrogrado. Como conseguiu?” Perguntou Dimitri.
“A culpa é de um erro da minha assistente. A senhorita preparou a mistura um para um e não a diluição desejada.”
Dimitri pegou o braço da amada, ergue-o e, num gesto de intimidade, pousou o nariz sobre o pulso dela. “Na pele é ainda mais maravilhoso do que no frasco”, ele elogiou, soltando seu braço. “Acho que deveríamos festejar o nascimento de sua Eau de Chanel, Coco.”
“Não creio que vá usar esse nome.” Gabrielle falou sem ter real consciência do que estava dizendo. Pensativa, acrescentou: “Quero chamar meu perfume de número 5. O número da amostra é um bom presságio. Sempre mostro minha coleção no dia cinco do mês cinco. O cinco combina maravilhosamente com o perfume da minha casa.”
“Mademoiselle Chanel, o número cinco é seu.” Ernest Beaux estava radiante pelo seu sucesso.
Sem querer, Ernest Beaux tinha usado uma combinação de palavras que deixou Gabrielle agitada, parecendo ter sido atingida por um raio. Ou talvez por um feixe de luz polar, a inspiração do perfumista para emprestar à sua antiga fórmula uma nota de saída moderna.
Chanel nº 5.
(texto resumido do livro, Mademoiselle Chanel e o Cheiro do Amor, de Michelle Marly)