terça-feira, 21 de maio de 2019

A assistente, um pequeno erro e o nascimento do Chanel nº 5

“Venha, por favor, Mademoiselle Chanel. Preparei dez amostras para a senhora. Duas vezes cinco...”
Gabriele hesitou. Como assim ele dizia o número que a acompanhava misticamente durante sua vida no convento, e que de alguma maneira tornou-a suportável? “Ho!” Ela soltou sem acrescentar mais nada.
“Aqui estão as amostras de um a cinco e aqui de vinte a vinte e quatro”, o perfumista apontou para os tubos. Beaux lhe entregou uma lata com grãos de café. Visto que já conhecia o ritual, ela limpou o nariz do cheiro da rua. Percebeu o olhar espantado de Dimitri, mas o deixou no ar; explicaria a ele o sentido do procedimento mais tarde.
Sua pulsação acelerou quando o perfumista abriu o primeiro frasco. Aromas de rosa e jasmim vieram em sua direção. Gabrielle tentou concentrar-se neles e, ao mesmo tempo, se manter impassível. Beaux não deveria notar o quanto ela estava agitada. Ela havia aprendido com François Coty a esperar para decidir, pois muitas vezes um aroma precisa de tempo para se desenvolver.
Na amostra número um, ela não precisou de muito esforço para ocultar seus sentimentos – não se tratava do aroma que procurava. Doce demais e fora de moda. Sem fazer comentários e com o rosto inexpressivo, Gabrielle devolveu a vareta de vidro que havia cheirado. O procedimento repetiu-se mais três vezes, antes de ela pegar novamente a lata com grãos de café. Seu nariz já estava mais educado, mas depois de quatro amostras precisava urgentemente de uma pausa para voltar a ser capaz de diferenciar os aromas de novo.
Ela pegou a quinta amostra – e precisou fazer força para abafar o sorriso que teimava em aparecer nos cantos da boca. Era o Bouquet de Catherine.
Não, Gabrielle se corrigiu mentalmente, não de todo. Havia ainda algo de diferente no lenço de Diaghilev.
Mais moderno. Mais fresco. Mais jovem. E mais alguma coisa. Será que esse aroma seria mais autêntico para as mulheres do seu tempo? Da maneira mais sóbria possível, ela devolveu a amostra para Ernest Beaux. E notou que estava sendo observada. Não por Dimitri, mas uma pessoa estranha não parava de encará-la. Sem pensar, ela virou a cabeça e olhou por sobre o ombro. A assistente de laboratório estava atrás de Dimitri, quase oculta por sua compleição forte.
Seguiram-se as fórmulas número 20 e 24, depois Gabrielle neutralizou o nariz novamente com uma inspirada no café, antes de se voltar aos três últimos frascos. Também esses perfumes correspondiam à mesma família de aromas, mas eram compostos de maneiras diferentes daquelas das cinco primeiras amostras. Gabrielle hesitou uma ou duas vezes, mas nenhum dos aromas impressionou-a tanto como o de número 5.
“A senhora quer tomar notas?” perguntou Beaux, quando ela lhe devolveu a última amostra.
Ela balançou a cabeça. “Não, não preciso. Gostaria de testar novamente a primeira série.”
Enquanto lhe passava uma amostra do número 1, ele sugeriu: “A senhora pode fazer mudanças a qualquer instante, Mademoiselle Chanel. Criar um perfume é um quebra-cabeças. Os ingredientes têm de ser constantemente testados antes de combinarem com perfeição. Se a senhora quiser outros ingredientes, podemos tentar. O laboratório este totalmente à disposição. ”
Lado a lado com Ernest Beaux, ela testou as mais diversas possibilidades. Ele lhe entregou, um depois do outro, os pequenos flaconetes que continham diversos óleos essenciais que tinham dado origem à nota de coração. “Essa família é composta pelos aromas mais luxuosos do mundo,” ele lhe explicou. “Rosa, jasmim, Ylang-Ylang e sândalo, que se contrasta com as substâncias mais doces. São aromas tradicionais numa combinação diferente e usual.
Ela cheirou em silêncio e depois de algum tempo, Gabrielle perguntou a Beaux o que havia de diferente no perfume que encantara seus sentidos.
“ É a alta concentração de aldeídos”, respondeu ele.
“São moléculas artificiais, certo?” ela perguntou , enviando secretamente um agradecimento a François Coty, que a introduzira nos segredos da produção de perfumes. “Me disseram que a produção de aldeído é muito trabalhosa e que, por isso, o perfume se torna muito caro.”
Depois de Gabrielle relatar a Dimitri que havia encontrado o que procurava, ela pediu uma amostra para que ele cheirasse.
“Tem o cheiro fresco de neve recém-caída nos telhados de Petrogrado. Como conseguiu?” Perguntou Dimitri.
“A culpa é de um erro da minha assistente. A senhorita preparou a mistura um para um e não a diluição desejada.”
Dimitri pegou o braço da amada, ergue-o e, num gesto de intimidade, pousou o nariz sobre o pulso dela. “Na pele é ainda mais maravilhoso do que no frasco”, ele elogiou, soltando seu braço. “Acho que deveríamos festejar o nascimento de sua Eau de Chanel, Coco.”
“Não creio que vá usar esse nome.” Gabrielle falou sem ter real consciência do que estava dizendo. Pensativa, acrescentou: “Quero chamar meu perfume de número 5. O número da amostra é um bom presságio. Sempre mostro minha coleção no dia cinco do mês cinco. O cinco combina maravilhosamente com o perfume da minha casa.”
“Mademoiselle Chanel, o número cinco é seu.” Ernest Beaux estava radiante pelo seu sucesso.
Sem querer, Ernest Beaux tinha usado uma combinação de palavras que deixou Gabrielle agitada, parecendo ter sido atingida por um raio. Ou talvez por um feixe de luz polar, a inspiração do perfumista para emprestar à sua antiga fórmula uma nota de saída moderna.
Chanel nº 5.
(texto resumido do livro, Mademoiselle Chanel e o Cheiro do Amor, de Michelle Marly)

sexta-feira, 10 de maio de 2019

AULA INTRODUTÓRIA
Um breve relato do primeiro encontro entre mademoiselle Chanel e o perfumista François Coty, para acertar detalhes da criação do Eau de Chanel... O futuro Chanel Nº 5.
"Perdão por tê-la feito esperar”, cumprimentou François Coty, levando as mãos dela aos lábios.
Gabrielle já o encontrara em ocasiões de negócios e o chamava secretamente de Napoléon. O nome não se referia apenas ao poderio de Coty: ele era mesmo originário da Córsega e corria a lenda de que tinha parentesco com a família Bonaparte. Igual ao imperador, Coty tinha baixa estatura, fama de mulherengo e de ser dado à ostentação. Corria o boato de que guardava um punhado de diamantes no bolso da calça, com os quais brincava feito bolinhas de gude.
“Não exagero ao afirmar que estamos atolados de serviço”, Coty prosseguiu. Ele segurou a mão dela um pouco mais do que a etiqueta sugeria. “Meu fornecedor de frascos não está dando conta dos pedidos. Evidentemente que entregar os cem mil vidrinhos que vendemos todo dia é um desafio, mas não estou disposto a diminuir a produção de perfumes só porque Lalique não consegue acompanhar a demanda das minhas clientes”. Certamente o número não foi citado en passant, mas para deixar claro à visita que ele chefiava um império mundial.
Ele quer impressionar, Gabrielle recordou-se e abriu um sorriso compreensivo. “Claro que sei valorizar o fato de ser recebida mesmo assim”.
“No futuro, vou desenhar e produzir os frascos na casa. Facilitará o processo produtivo. Acabei de ditar uma circular à minha secretária informando meus clientes a respeito. Amanhã será despachada. A senhora é a primeira a saber dos meus planos, mademoiselle Chanel.”
“Sinto-me honrada.”
Ele abriu um sorriso. “Por favor, sente-se.”
Enquanto ela afundava numa poltrona, tomou uma primeira nota mental. Ela tinha que pensar na criação de um belo frasco para o seu perfume, procurar um vidreiro com uma pequena fábrica. As dificuldades que René Lalique estava sujeito ao trabalhar com François Coty não lhe diziam respeito. Gabrielle não pensava em inundar o mercado com o Eau de Chanel. Ela tinha conversado com Boy a respeito de um presente especial de Natal para suas melhores clientes – e disso não passaria. O que significava produzir não mais de cem unidades.
Coty lhe ofereceu um café, que ela aceitou agradecida. Seguiu-se uma troca de amenidades sobre temas relativamente neutros: Coty lamentou a morte do escritor Paul Adam, Gabrielle reclamou do tempo fresco, úmido. Depois ela mudou de assunto e explicou seu caso. O perfumista assentiu com a cabeça, já sabia de alguma coisa por intermédio da esposa, que conversara com Misia. Mas deixou Gabrielle terminar de falar, antes de dizer todo galante: “Será uma honra poder lhe criar um aroma, mademoiselle Chanel. Um trabalho nosso, em conjunto, certamente trará bons frutos.“
“Eis o motivo de eu estar aqui.”
“Meu lema é: ofereça a uma mulher o melhor produto possível, apresentado num frasco lindo, vendido a um preço razoável – o resultado será um mercado de tamanho inédito no mundo.”
“Procuro por um presente para minhas clientes, não por um grande mercado.”
Ao fazer um movimento curto com a mão, ele pareceu desdenhar dessa limitação. “Nada disso é problema. Confie totalmente em mim e...”
“Sem dúvida, monsieur”, ela interrompeu-o com uma voz muito doce. “Devo apenas acrescentar que quero estar envolvida no processo de criação desde o início.”
Ele hesitou. “ O que quer dizer com isso? A senhora não é química, a senhora...”
“Evidentemente...” ela o interrompeu de novo, “evidentemente que vou deixar a parte técnica aos especialistas.” Ela fez uma breve pausa e abriu um sorriso amistoso, para depois continuar: “Mas eu quero acompanhar todos os passos da produção, ser informada também a respeito da fórmula e do acabamento. Isso é muito importante para mim. Esse perfume é algo que me diz muito ao coração.”
“Sempre é, mademoiselle Chanel, sempre é. Se não cheirássemos com o coração, os perfumes não seriam mágicos. A fascinação vem aqui de dentro.” Ele bateu com a mão aberta no peito, “e não aqui de cima” e tocou a testa com o indicador. “Porém, para satisfazer seu desejo, a senhora tem de estar de posse de um requisito fundamental: “como vai seu nariz?”
Inconscientemente, ela tocou o rosto. “Como assim?”
“Vou lhe mostrar.” Ele se levantou, aproximou-se da estante com os frascos de vidro e pegou um com sua mão grande, mais três tubos de ensaio de farmácia. De volta à poltrona, colocou tudo na mesinha junto com as xícaras de café. Em seguida, abriu o frasco e passou-lhe uma vareta de cristal. “O que a senhora sente?”
Ela cheirou. A resposta à pergunta era fácil. Ela reconheceu o inconfundível perfume na hora. “É Chypre.”
“Sim. Meu perfume. A eau de toilette de maior sucesso do mundo. Estava certo que a senhora o reconheceria. Na verdade, estava perguntando pelos aromas.”
“Tem jasmim...” ela murmurou, franzindo a testa. De repente, ela não tinha mais certeza se apenas estava dizendo o que já sabia ou se realmente estava sentindo a doçura passada pelo jasmim. Ela tentou concentrar-se no olfato, mas não conseguiu decifrar os outros ingredientes. “me lembra um pouco o cheiro de talco...” ela se interrompeu para acrescentar: “Algo me lembra de um passeio no campo.”
“Nada mal”, ele elogiou. A senhora foi bem, mademoiselle Chanel. Vai valer a pena educar um pouco seu nariz. A nota de cabeça é realmente o jasmim, e ainda temos patchouli, vetiver, sândalo, bergamota e musgo de carvalho. Essa mistura de essências é o segredo de um perfume moderno. Um perfumista tem à disposição centenas de milhares de possibilidades, encontrar a fórmula correta é sua arte. A senhora deveria saber de tudo isso antes de entrar no processo criativo.”
Coty estava esperando que ela fizesse um curso de química antes de se meter na produção de um eau de Chanel? “Ouvi dizer que a formação do perfumista é muito difícil”, ela reconheceu. Mas nada é difícil demais para não ser ao menos tentado, ela pensou. Coty interrompeu suas lembranças ao pegar a vareta da sua mão e fechar o frasco. Em seguida, tirou a rolha de uma garrafinha marrom. “E isso?”
O penetrante aroma picante e doce era inconfundível.
“Sândalo”, ela exclamou triunfal.
“Exato.” Ele trocou os frascos mais uma vez. “Por favor, tente este.”
Gabrielle tinha imaginado que ele lhe colocaria diante de uma tarefa mais difícil, mas não que... Céus, o que estava acontecendo? De repente seu nariz não cheirava mais nada. Era como se estivesse com um resfriado forte. Ela sentiu um aroma de laranja, muito fraco, mas também podia estar imaginando coisas. Ou será que ele estava tentando confundi-la, oferecendo um produto inodoro? Confusa, ela balançou a cabeça. “ Não faço ideia.”
“Claro que não.”
Ela não sabia se tinha de achar graça ou ficar irritada por estar caminhando sobre gelo fino. Coty estava se fazendo de examinador astuto. Que ridículo de sua parte. Mas ele prosseguiu claramente: “O nariz se fecha depois de no máximo três provas olfativas, no caso de perfumes intensos até antes. Aliás, trata-se de bergamota.” Ele esticou a mão em direção a um pote antigo de porcelana, decorado com ornamentos dourados, e abriu a tampa. Ela achou que ele guardava charutos ali, mas ficou surpresa com o cheiro que sentiu. “Por favor, mademoiselle Chanel, cheire um pouco esses divinos grãos de café. O café neutraliza o olfato.”
Ainda preciso aprender tanto, ela pensou, enquanto seguia a sugestão. O efeito foi surpreendente. Seu nariz estava novamente pronto para entrar em ação. Vou treinar em casa, ela se decidiu em silêncio. Vou aprender a arte dos aromas exatamente como quando me sentei sozinha no cavalo e saí andando. Agora ela queria educar o olfato para guardar esse amor para sempre. Sensual, fresca, eterna – Eau de Chanel deveria ser assim. Gabrielle sorriu, satisfeita. Com sua aula introdutória, Coty contribuiu para uma visão.
Coty continuou testando-a, fazendo com que cheirasse novos aromas a cada vez e lhe recitava nomes de essências cuja existência desconhecia. Ele não usava apenas a denominação corrente como nota de cabeça e nota de corpo, mas também diferenciava entre notas e famílias olfativas. Gabrielle ouvia tudo em silencia e sugava todas as informações. Mais tarde, ele acompanhou-a pela sua fábrica. No caminho até os grandes galpões , ele lhe explicou que as mais valiosas espécies de rosas e de jasmim são originários do sul da França e por essa razão mantinha um local de seleção em Grasse. “Todos os dias, cerca de cem mulheres se ocupam em achar as melhores flores para destilação. O resultado continua a ser processado aqui.”
“E aqui está o laboratório”, Coty abriu uma porta: “observe sua futura área de trabalho, mademoiselle Chanel.” Ele deu uma piscadinha e abriu caminho para que ela entrasse.
Ela observou os homens e suas assistentes com os aventais brancos e se perguntou como os perfumistas e os químicos conseguiam diferenciar, nessa atmosfera, os diversos ingredientes de uma eau de toilette.
Como se tivesse lido seus pensamentos, Coty falou: “Um nariz educado consegue se concentrar num determinado aroma. Mas isso não é sempre necessário. Muitas vezes as de coração são obtidas apenas por fórmulas químicas, de modo que o olfato tem um papel secundário nessa hora. Mas a senhora vai conhecer tudo isso quando começar a estagiar comigo.”
Gabrielle apertou a base do nariz com a ponta dos dedos e, balançando a cabeça, concordou.
(Resumido do livro, Mademoiselle Chanel e o Cheiro do Amor, de Michelle Marly).

terça-feira, 7 de maio de 2019


Eau de Chanel... Ideia inicial
Um trecho da conversa entre Coco e sua melhor amiga Misia, que deu início à “ideia de criação” do Chanel Nº 5, logo após a morte de Boy Capel, o grande amor da vida de Gabrielle Chanel.


“Sobre o que vocês falaram pela última vez? ”, perguntou Misia. Ela dirigiu uma prece silenciosa aos céus, pedindo a Deus para lhe dar a inspiração capaz de tirar Coco daquela letargia. E arriscou: “Quero dizer, quais os planos comerciais de vocês? ”
“Não me lembro mais. Misia não me lembro mais dos detalhes da nossa conversa. Foram tantas coisas...” Desesperada, Coco tentava agarrar algo dentro do seu interior, mas não conseguia. Duas lágrimas despontaram em seus olhos e ela esfregou-as no rosto como se quisesse afastar um inseto irritante. De repente, um pouco de vida instilou-se em seu semblante. “Tratava-se de um perfume. Isso, sim, conversamos sobre uma eau de toilette. “
Misia orou em silêncio e esperou.
A voz de Coco soava estranhamente monótona, quase surpresa, como se admirada o quão bem sua memória tinha voltado a funcionar de repente: “ Havia algo no jornal sobre um assassino de mulheres, que só foi preso porque uma testemunha se lembrou do seu cheiro. O homem usava Mouchoir de Mousieur, de Jacques Guerlain, e Boy e eu conversamos sobre as peculiaridades desse perfume. Pensamos se eu não deveria oferecer uma Eau de Chanel às minhas clientes. Não nas boutiques, mas como presente de Natal. Uma produção de cem vidros...” Sua voz emudeceu.
Misia estava ciente de que nunca mais Coco haveria de passar um Natal leve, sem recordar do acidente de Boy. Temendo que a amiga fosse submergir no seu mar de infelicidade, ela resolveu encompridar o assunto: “Ora, um perfume é um presente para todas as datas. Uma ideia maravilhosa. Veja François Coty: ele ganhou uma fortuna com Chypre porque os soldados americanos enviaram milhões de frascos para casa como souvenir ou levaram consigo, quando foram embora. Suas clientes vão amar uma Eau de Chanel...”
“Monsieur Coty é um perfumista. Ele tem uma fábrica. Sou apenas uma costureira.”
“Não seja ridícula, querida.” Misia começou a se animar com o tema. Soltou a mão de Coco para continuar gesticulando, cheia de energia: “Paul Poiret também é apenas um estilista...”
“Mas o maior...”
Até agora a proeminência de Poiret não abalou sua ambição em nada e nem vai. O importante seria achar uma nota olfativa que fosse tão única quanto a sua moda. Nada de perfumes pesados, que recendem a rosas. O perfume de Rosine de Paul Poiret não é outra coisa senão uma impressão sensorial das criações dele. E não é mais uma última moda. Você faz sucesso, Coco porque ...”
“Porque eu tinha Boy ao meu lado...”
Misia gemeu internamente. “Sim, claro, também por isso. Mas me permita, Coco, ele não desenhou suas roupas. As suas ideias é que são tão modernas. E o seu sucesso vem principalmente daí. E se você priorizar o que é único no seu estilo na hora de escolher os aromas de sua eau de toilette, estará fazendo uma homenagem a Boy.” Sem fôlego, Misia silenciou, cruzou os dedos sobre o colo e esperou a reação de Coco.   
“ Você tem razão. Já pensei nisso também: vou mandar erguer um monumento para Boy. De pedra. No lugar do acidente. Quero criar um lugar para sua memória.“
“Mire o futuro, Coco! Por favor, não olhe para trás. Por Boy. Por mim. Você não pode simplesmente desistir.”
Perdida em pensamentos, Coco passou a mão pelos cabelos. Não disse que uma Eau de Chanel não era uma boa ideia. Meus Deus, foi sugestão de Boy. – Como não dizer que é maravilhosa? Mas não consigo. Sei criar chapéus e costurar roupas, mas não tenho nenhuma noção sobre o trabalho de um perfumista. Trata-se de uma área diferente, muito especial. Não vou consegui sozinha. E não sei de ninguém que poderia me apoiar nessa empreitada. Eu teria que confiar cegamente nessa pessoa. Boy teria me ajudado. Mas Boy não está mais aqui para descobrir comigo qual seria meu perfume. “
Misia duvidou que Arthur Capel, (Boy) ligado às artes e com formação literária, fosse a pessoa adequada para iniciar Coco nos processos de trabalho num laboratório químico. Mas ela deixou o pensamento de lado e decidiu tomar a frente da coisa. “Yvonne Coty é uma boa amiga. Você também a conhece, não? Ela não é sua cliente? Bem, tanto faz: eu poderia pedir para ela falar com o marido. François Coty certamente poderá ajuda-la. Ele não consegue negar nenhum desejo de nenhuma mulher e ninguém melhor para ensinar-lhe os segredos dos aromas que o maior fabricante mundial de cosméticos. ”
“Quando falamos a respeito, Boy disse que Coty era o melhor para fabricar uma Eau de Chanel”, murmurou Coco.
“Como ele tinha razão.”
Coco encarou Misia com olhos grandes, inescrutáveis. “Por que alguém tão ocupado quanto monsieur Coty iria perder tempo comigo? Dizem que ele é um tirano.”
“Mas um tirano muito charmoso. ” Misia deu uma risadinha. “sabe, mesmo François Coty tem suas fraquezas. Yvonne me contou como ele se importa em sempre fazer boa figura. Como o grão-duque em A cartuxa de Parma. Quanto mais conhecida a pessoa que Coty pode impressionar, com suas habilidades, melhor. E o que é mais tocante do que uma mulher famosa que, como homenagem ao seu amor, deseja concretizar seu último desejo? ”
Um pouco de cor retornou à face pálida de Coco. “Um perfume em lembrança de Boy. É algo bem diferente de um monumento...”
“Se você encontrar um aroma especial, será um monumento. Um momento do amor de vocês.” Misia ficou ouvindo, espantada, o eco das próprias palavras. Como ela havia chegado a essa ideia? Um anjo deve tê-la sussurrado em seu ouvido. Era exatamente o caminho certo para tirar Coco da sua letargia.
“Talvez. Mas então eu deveria encontrar o melhor aroma do mundo. ”
“Você tem de conseguir o melhor perfume do mundo. ” Misia estava radiante. Ela se perguntou se haveria um deus dos bons cheiros na mitologia antiga. Pena, não sabia. Mas com ou sem um deus dos perfumes, a alegria de viver de Coco era importante demais para ser entregue a forças terrenas. Em pensamento, Misia rogou a todos os deuses que lhe vieram à mente naquela hora.
“Primeiro vou arranjar uma reunião com François Coty para você. Estou segura que depois desse encontro tudo será muito fácil.”

(Extraído do livro: Mademoiselle Chanel e o Cheiro do Amor, de Michelle Marly)

sexta-feira, 3 de maio de 2019


A HUMANIDADE E O PERFUME

Uma das curiosidades polêmicas do mundo da perfumaria está relacionada ao seu surgimento, justamente porque o perfume faz parte da história da humanidade e da evolução do próprio homem. O olfato desempenho, desde os primórdios, funções relacionadas não só à sobrevivência dos seres humanos, mas também ao prazer, uma vez que os bons cheiros despertam uma agradável sensação. Isso levou o perfume a ser utilizado, desde sempre, como um meio de louvor aos deuses e à própria natureza.
Segundo a especialista Sônia Corazza, desde que o homem primitivo ganhou sua forma, há cerca de 50 mil anos, ele começou a fazer uso das plantas que tinha à sua disposição jogando-as ao fogo para fazer oferendas perfumadas aos deuses. Por essa razão, a palavra perfume é originária do Latim PER FUMUM, que significa através da fumaça.
No Egito, a cultura do perfume produzido através da fumaça era uma forma de louvor nos templos.
Uma breve ideia da sofisticação alcançada na perfumaria egípcia é relatada nos estudos dessa civilização em que consta uma receita de perfume de 3 mil anos que continha mais de 10 ingredientes em sua elaboração. Entre eles destacam-se a canela, a mirra e a menta.
Foi no Egito também que nasceu a associação do perfume à sedução, com a rainha Cleópatra, que conquistou que conquistou o imperador romano Julio César e seu general Marco Antonio. Cleópatra tornou-se lendária por seus artifícios de sedução, incluindo o perfume fabricado para seu uso pessoal, o Cyprinum, composto por óleos essenciais extraídos das flores de hena, açafrão, menta e zimbro.
Assim como o prazer através dos cheiros é universal desde a antiguidade, na Índia, região que conquistou o mercado antigo com o comércio de suas especiarias, o perfume também estava estreitamente relacionado aos rituais religiosos e era utilizado para manter afastados os maus espíritos associados às enfermidades.
Outra característica histórica do perfume é sua elitização, que o coloca como objeto de desejo e admiração. Desde tempos remotos, fora do ambiente religioso, o uso habitual dos perfumes estava restrito às castas superiores. Entre as fragrâncias preferidas dos indianos das mais altas camadas sociais figuravam as essências mais encorpadas, como o sândalo, um óleo essencial com cheiro bastante intenso de madeira, e o jasmim, flor branca cujo óleo essencial é mais denso que o das flores mais leves como a lavanda.
Mas é impossível falar sobre o perfume pelo mundo antigo sem fazer uma breve visita à Grécia, berço da filosofia e da ciência, onde a perfumaria recebeu um tratamento sistemático na prática e também na teoria. Também na sociedade ocidental, entre os cristãos, o perfume está presente em toda a sua história.  Centenas de vezes, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, há citações que fazem referência a óleos, incensos, mirra e especiarias. Nas escrituras cristãs, o perfume figura ainda na narração do nascimento de seu Messias, na chegada dos reis magos.
Após o fim do Império Romano, segundo relata Sônia Corazza, na Europa Feudal, a busca pela pedra filosofal, um preparado químico que poderia transformar qualquer metal em ouro, levou a experimentações diversas que resultaram na descoberta das propriedades de muitas plantas, suas características e seus odores variados.
Porém, os primeiros relatos históricos ocidentais da perfumaria datam apenas do século XIII, quando artesãos, maravilhados com a arte de manipular os cheiros da natureza, foram desenvolvendo suas técnicas. Até que, no início desse mesmo século, o rei da França, Felipe II, o Augusto, reconheceu a profissão de perfumista e oficializou locais para produção e venda de criações olfativas.
Na época do renascimento, a descoberta das Américas levou para a perfumaria novas matérias-primas, como o bálsamo do Peru e o cacau. Como o impulso proporcionado pelo Renascimento foi mais intenso na Itália, não é de surpreender que Florença se tornasse uma das mais vibrantes cidades do seu tempo, transformando-se, nesse período, o centro europeu do perfume.
No Renascimento, em Florença, nasceu uma personagem de grande relevância para a perfumaria do século XV: Catarina de Médici, filha de Lorenzo II e futura esposa de Henrique II, rei da França. Essa história, narrada em Larousse del perfume y las essencias, destaca uma ligação forte entre as duas regiões que disputavam o título histórico de criadores da perfumaria europeia: Itália e França.
Em 1853, ano em que Napoleão III casou-se com a aristocrata espanhola Eugênia de Montijo, Guerlain lança o eau de cologne Imperiale, perfume criado em homenagem à imperatriz Eugênia, e vendido até hoje na mesma embalagem desde o seu lançamento. Assim que foi lançado, tornou-se a primeira fragrância de sucesso no mercado francês, fato identificado como um marco do nascimento do perfume moderno.

(Texto resumido do livro, Estação Perfume, de Luciene Ricciotti.)

domingo, 28 de abril de 2019

CLASSIFICANDO O PERFUME QUANTO À SUA DILUIÇÃO


Ao criar um perfume, o perfumista elabora diversos ensaios. Depois que as melhores opções são definidas, as  fórmulas são elaboradas e testadas em novas pesagens, dependendo do método de trabalho de cada equipe.
O concentrado de essências de um perfume, com suas notas, corpo e fundo, encontra-se em seu formato puro, impossível de ser usado sobre a pele por sua grande intensidade. Será preciso, então, deixá-lo pronto para o uso através da diluição, que permitirá que a fragrância se espalhe por uma região mais ampla, reagindo com a pele após a evaporação do diluidor.
A diluição de um perfume é mais um fator que influencia na sua fixação, depois do perfil olfativo e porcentagem das notas notas de fundo constantes na fragrância. Perfumes que duram mais são os que apresentam menos diluição, ou seja, tem maior quantidade do concentrado dos óleos essenciais por cada 100 ml.
O perfume pode ter alta ou baixa concentração de fragrâncias. conforme essa porcentagem de fragrância, recebe uma nomenclatura global com certas variações da proporção de cada um, de uma bibliografia para outra e de um país para outro, especialmente devido à possibilidade de existência de leis locais que regulamentam a nomenclatura para cada porcentagem de diluição. A ausência de uma classificação mundial, com estabelecimento de uma nomenclatura única, justifica o grande volume de informações que podem confundir o consumidor de perfumes e mesmo atrapalhar a comparação de preços na hora da compra. É preciso compreender esse conceito e ter atenção.
A Société Française des Parfumeurs (Sociedade Francesa dos Perfumistas), responsável pela primeira classificação dos perfumes em famílias olfativas, orienta: "extrato é o nome profissional de um produto mundialmente consagrado sob o nome de perfume".
Extrato ou Parfum - quando apresenta de 15% a 30% de matérias-primas fragrantes. Porcentagem mais habitual na perfumaria de luxo genuíno, como em poucas marcas globalizadas e nas seletas casas de perfumes de nicho.
EAU de Parfum (EDP) - Apresenta de 10% a 15% das matérias-primas fragrantes. A maioria dos bons perfumes femininos, tanto importados quanto nacionais, apresenta essa concentração por garantir uma boa durabilidade na pele.
EAU de Toilette (EDT) - É um produto que apresenta de 5% a 10% das matérias-primas fragrantes. Uma composição mais leve que pode deixar uma fragrância densa, Mas mais adequada para ser usada durante o dia.
 EAU de Cologne (EDC) - apresenta de 3% a 5% das matérias-primas fragrantes. Um perfume leve, ideal para manhãs e tardes quentes de verão.
EAU Fraîche (água doce), deo colônia, splash ou bady splash - quando apresenta abaixo de 3% das matérias-primas fragrantes. As deo colônias são uma paixão dos brasileiros que preservam a forte cultura dos banhos de cheiros, que, além de tudo, representam um perfil de perfume extremamente adequados para os dias quentes de verão.

Texto resumido do livro, Estação Perfume, de Luciene Ricciotti

quinta-feira, 25 de abril de 2019

OS CHEIROS E AS EMOÇÕES


Outro conhecimento sobre o olfato, que tem influência decisiva no consumo de perfumes, diz respeito à memória olfativa. A preferencia por determinado cheiro está relacionada às sensações vividas quando esse cheiro é inalado.
Conforme a especialista Sonia Corazza, "uma das estruturas mais antiga do organismo, a parte do cérebro que se destinava primitivamente ao olfato, evoluiu e, hoje, controla as emoções e outros aspectos do comportamento".
Tal fato é destacado também por Rachel Herz, da Universidade Brown, autora do livro The Scent of Desire (O aroma do desejo). Em matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo, Herz afirma que, "é importante lembrar que o córtex olfativo está relacionado ao sistema límbico do cérebro e com a amígdala, onde as emoções nascem e as memorias olfativas são registradas. É por isso que cheiros, sentimentos e memórias ficam tão próximos".
Um exemplo interessante da influência das emoções na percepção dos cheiros foi narrada do Céline Morineau, filha do perfumista francês Jean Luc Morineau, em uma conversa informal no Instituto do Perfume. Céline contou sobre o resultado de um exercício feito por seu pai em sala de aula, durante seu curso na ABC Cosmetologia. Morineau solicitou à sua turma que cada aluno colocasse em uma tabela, na primeira coluna, uma lista de cheiros "bons", na segunda, uma lista de cheiros "ruins". Ao olhar uma das tabelas entregues, Morineau chamou o aluno e comentou que ele deveria ter se confundido, pois na coluna em que era para colocar cheiros bons estava, em primeiro lugar, cheiro de peixe podre.
Então o rapaz explicou que seu pai, que era pescador, passava meses longe da família em alto mar e, quando retornava, vinha com um forte cheiro de peixe apodrecido, e a alegria era restabelecida em sua casa. Ele adorava esse cheiro.
Sua memória associava um cheiro, que é ruim para a maioria das pessoas, a uma sensação de alegria e bem-estar, resgatando essas emoções positivas toda vez que esse rapaz sentia cheiro de peixe podre, tornando esse odor desagradável em algo positivo e prazeroso.
Esse exemplo mostra o que a ciência estuda e busca entender: como a percepção e o prazer em sentir alguns cheiros estão diretamente ligados às sensações e emoções que são vividas no momento marcado por determinadas fragrâncias.
Entender como os cheiros são gravados emocionalmente na memória auxilia a compreensão sobre os gostos de cada um e reforça o fato de que conhecer e respeitar a preferencia olfativa das pessoas é, de certa forma, conhecer e respeitar a sua história e suas emoções.
Tal característica emocional do olfato é o que torna a perfumaria um universo mágico de emoções e que associa esse sentido, inclusive, à imaginação. Por essa razão, o suíço Jean-Jacques  Rousseau, um dos maiores escritores e filósofos do século XVIII, afirmou: "O olfato é o sentido da imaginação".
Extraído do livro, Estação Perfume, de Luciene Ricciotti.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

O BRASILEIRO E O PERFUME

De onde veio essa paixão por cheiros que fez do nosso país o maior consumidor mundial de fragrâncias? Dos índios. Desde o descobrimento do Brasil há relatos dos portugueses sobre os hábitos de assepsia dos nativos. Os europeus em geral viam o perfume como uma maneira de encobrir odores corporais, pois acreditavam que o hábito de tomar banho atraía doenças. Já os índios viam no ato da perfumação o relacionamento com a natureza e uma maneira de comunicar-se entre si e com seus deuses. Seus banhos de cheiro eram repletos de óleos de flores, ervas e folhas aromáticas, favorecidos pela abundância de rios e biodiversidades nas regiões Norte e Nordeste. Enquanto os portugueses pragmaticamente aplicavam extratos concentrados para encobrir o mau cheiro, os nativos tinham o costume de banhar-se várias vezes ao dia e de apreciar os aromas levemente, pois precisavam de seu olfato intacto para caçar ou defender-se de animais selvagens. Mais tarde os negros trouxeram para o Brasil outros rituais religiosos com defumações, enfatizando ainda mais a importância desse artefato. O contato com a perfumaria francesa no inicio do século XX não conseguiu afetar a preferência nacional pelas águas de colônia (ou águas de cheiro), que ainda são vendidas extensivamente e rotuladas como "deo-colônia". Além do perfume em si, o brasileiro aprecia fragrância em praticamente tudo que aplica no corpo, desde o talco para bebê até o hidratante.

(Texto extraído do livro, 303 perfumes para provar antes de morrer, de Daniel Barros.)